Você com certeza conhece de nome alguns dos chefs franceses famosos, como Bocuse, Boulud, Ducasse, Robuchon e, aqui no Brasil, Troisgros, Jacquin, Bassoleil e Laurent Suaudeau. Mas aposto que, como a maioria de nós, nunca ouviu falar da chef francesa Eugénie Brazier.

Eu também nunca tinha ouvido falar dela. Estava em Paris com a Fernanda Valdívia, da Deli Garage, em 12 de junho de 2018, quando o Google publicou um doodle, visível apenas na Europa, em homenagem ao aniversário de nascimento de Eugénie Brazier (1895 – 1977), “Mother of Modern French Cooking“. Veja o vídeo do doodle europeu ao lado.

Foi a primeira mulher a ganhar três estrelas do Guia Michelin, em 1933, fazendo de Lyon a capital da gastronomia francesa. Foi o primeiro chef a ganhar duas vezes, simultaneamente, três estrelas em seus dois restaurantes, ambos chamados La Mère Brazier, um em Lyon e outro perto, em Col de la Luère, na pequena vila de Pollionnay.

Brazier declinou convites para se instalar em Paris e Nova York, alegando que “seu instinto a impedia de andar em terra alheia”. Durante seis décadas foi soberana, o primeiro e único chef do mundo a ter “seis estrelas”.

Em 1997, Alain Ducasse igualou-se a ela e foi proclamado o “primeiro chef 6 estrelas” da história por The New York Times. Cinco dias depois o jornal se retratou, reconhecendo a precedência de Eugénie Brazier. Outros chefs mereceram a mesma honraria nos anos seguintes: Marc Veyrat em 2001, Thomas Keller em 2006, Joël Robuchon em 2012 e Yannick Alléno em 2007 e 2017. 

Acima de tudo, Brazier foi uma mulher admirável. Dona do seu próprio negócio, exímia cozinheira, atravessou com êxito as duas guerras mundiais, a grande depressão, a ocupação nazista e a revolução da culinária francesa no século XX.

Filha  de camponeses, cresceu cuidando de porcos e vacas. Perdeu a mãe aos 10 anos e foi expulsa de casa pelo pai aos 19, grávida de um homem casado. Empregada como ama de leite em uma família rica de Lyon, foi parar na cozinha, onde começou a desenvolver seu talento. Tanto talento que logo conseguiu emprego e a chance de aprender nos melhores restaurantes da cidade. Em pouco tempo juntou dinheiro e abriu o primeiro La Mère Brazier em 1921, aos 26 anos de idade.

Privilegiando a simplicidade e o uso de ingredientes frescos, Brazier conquistou clientes fiéis como Marlene Dietrich e Charles de Gaulle. Jamais almejou tornar-se uma celebridade da gastronomia, ao contrário dos colegas da época, como o chef Alexandre Dumaine, proclamado o “Rei dos Cozinheiros”.

Paul Bocuse, o genial criador da nouvelle cuisine, foi seu pupilo, ou melhor, seu “escraviário”, como se chamam os estagiários e principiantes na dura faina da cozinha. Diz a lenda que começou passando a ferro quente os guardanapos do restaurante.

Em suas próprias palavras, segundo Le Parisien:  “C’était l’école de la vie, j’y ai appris à traire les vaches, à faire la lessive, à repasser, à cultiver les légumes dans un potager. La mère ne nous accordait jamais aucun jour de repos”.

Em tradução livre: “Era a escola da vida, onde aprendi a ordenhar vacas, lavar louça, passar roupa e cultivar legumes na horta. A ‘mãe’ não nos permitia sequer um dia de descanso.”

O único livro de receitas que Eugénie Brazier deixou, inacabado, foi escrito dois anos antes de morrer em 1977. Finalizado com ajuda da familia, “La Mère Brazier. A Mãe da Cozinha Francesa Moderna” foi impresso apenas em 2009.

Na introdução, Bocuse diz que ela é “um dos pilares da gastronomia mundial”, que “nos ensinou tudo sobre sabores, e nos fez amar o trabalho árduo e bem feito [do cozinheiro]. Nenhum de nós teria tido sucesso sem ela, e disso nos esquecemos frequentemente nos dias de hoje.”

O prato favorito de Brazier era uma receita da sua mãe, um caldo de alho poró e legumes cozidos em leite e água, encorpado com ovos e deitado sobre pão dormido.

As especialidades da sua cozinha eram um fundo de alcachofra ao foie gras, uma lagosta Belle Aurore, ave trufada recheada a “meio-luto” (tostada por fora, alva por dentro) com legumes, e o famoso bolo de ave e coelho à la mère Brazier.

A ausência de Eugénie Brazier na história da culinária que se encontra na mídia, nos cursos, nos programas de televisão e nas próprias rodas de conversa dos cozinheiros é apenas mais uma prova do viés cultural ocidental, que exalta tão somente os cozinheiros machos brancos europeus.

O próprio Paul Bocuse não empregava mulheres na cozinha. Em uma entrevista nos anos 70, afirmou que preferia ter uma mulher na sua cama (sic) do que comandando um fogão no seu restaurante! Apontava o dedo para o gênio forte da Madame Brazier, descrevendo-a como uma “cozinheira austera e retraída”, ao invés de apontar seu imenso talento na cozinha.

Sobre esse tipo de preconceito, vale a pena ler o artigo Erasing Women from Culinary History (“Apagando as Mulheres da História da Culinária”) de Deborah Reid.